
Com o avanço do streaming, das redes sociais e das plataformas de conteúdo com feeds infinitos, a natureza do valor econômico passou por uma mutação silenciosa. Os ativos mais relevantes das empresas contemporâneas já não se encontram em galpões, estoques ou máquinas, e agora estão em elementos imateriais. Marcas registradas, dados patenteados, propriedade intelectual e por aí vai. São coisas que existem na percepção dos consumidores e em servidores digitais, mas que não têm substância física. Bem-vindo à era dos intangíveis, que se tornaram motores centrais do crescimento corporativo e da dinâmica macroeconômica.
Ainda assim, continuam subvalorizados, mal compreendidos e quase esquecidos nos demonstrativos financeiros tradicionais. Ironicamente, poucas metáforas ilustram tão bem essa virada quanto as trajetórias de Taylor Swift e Larissa Manoela, ambas estrelas de primeira grandeza no auge da fama. A primeira, talvez a maior celebridade do momento, reposicionou sua carreira ao regravar a própria discografia e transformar sua imagem em um império de propriedade intelectual. Já a segunda, símbolo da geração Z brasileira, construiu uma operação empresarial robusta com marcas registradas e licenciamentos, mas viu seu patrimônio ser tratado pela imprensa como uma “fortuna desaparecida”. Em comum, as duas mostram como um nome famoso, uma imagem bem trabalhada e uma presença digital tratada como se fosse ouro deixaram de ser apenas elementos que definem um artista e passaram a ser a nova moeda do sucesso.
No caso de Taylor, o que pareceu inicialmente uma reação emocional à venda de seu catálogo por Scooter Braun se revelou uma manobra jurídica e gerencial de altíssimo rigor. Em vez de recorrer à Justiça, ela regravou os álbuns sob titularidade própria, apoiada por cláusulas contratuais que autorizavam a prática depois de determinado prazo. O gesto, além de simbólico, gerou versões comercialmente mais bem-sucedidas que as originais e consolidou a popstar como gestora plena de sua marca pessoal. Com uma estratégia que envolveu o registro em massa de letras, expressões e até nomes de seus gatos como designações comerciais, Taylor transformou sua identidade em ativo financeiro, monetizado por meio de licenciamentos, produtos e direitos autorais.
Apenas com merchandising na “The Eras Tour”, estima-se que ela tenha embolsado mais de US$ 440 milhões em 2024. Some-se a isso seus royalties no Spotify, onde é campeã de reproduções e que ultrapassaram os US$ 97 milhões em 2023, e dá pra entender como ela chegou ao patrimônio pessoal de US$ 1,6 bilhão, segundo a “Forbes”, em tão pouco tempo. Por outro lado, Larissa ilustra um caso não de potencial perdido, mas de potencial mal compreendido. Com um portfólio robusto de ativos intangíveis consistido em cerca de 100 produtos licenciados, parcerias com gigantes como Netflix, Globo e L’Oréal, e até uma operadora de rede virtual móvel própria, a eterna Maria Joaquina de “Carrossel” estruturou uma arquitetura empresarial sólida, ancorada em 19 marcas registradas em seu nome.
Mas, quando veio a público relatar o rompimento com os pais, declarando ter “perdido tudo”, a cobertura dominante ignorou completamente esse império de branding. Bastou uma imagem exibida em rede nacional, a de um contrato social recortado para ocultar em vídeo justamente o que mais há nele (assinaturas e rubricas de Larissa em todas as páginas, o que contradiz sua versão de jamais ter visto o documento), para que se criasse a ideia de abuso financeiro. O “escândalo” real, no entanto, girava em torno de uma participação de apenas 2% em uma empresa fundada quando ela ainda era criança e, portanto, legalmente incapaz de atuar no negócio. Isso desviou o foco do que realmente importa.
O drama parecia crível, mas contrastava com fatos legais incontornáveis. Emancipada desde os 16 anos, Larissa foi autorizada pelos próprios pais a gerir, desde então, seus contratos e registrar suas marcas, sendo essa uma escolha deles que aponta mais para blindagem financeira do que para negligência. Desde 2020, ela figura como única proprietária da empresa que concentra esses ativos e que os gere com mão de ferro. Larissa sempre foi a única titular das marcas registradas em seu nome, dona de 100% de cada uma, os ativos intangíveis inalienáveis que constituem o núcleo de sua verdadeira fortuna e fonte de seus rendimentos. É um patrimônio que faz dela, guardadas as proporções, a ‘Taylor Swift brasileira’.
Mesmo diante dessas obviedades, a imprensa preferiu o que parecia ser, em vez de buscar o que de fato era. Nenhum veículo consultou bases de dados de marcas ou especialistas em propriedade intelectual. O resultado foi uma narrativa simplificada que reduziu um império de marcas registradas a uma disputa familiar por misteriosos R$ 18 milhões, aparentemente em espécie, e uma cifra que, à luz do valor agregado de suas marcas e variantes, equivale a pouco mais que um cafezinho. Justo no momento de supervalorização dos intangíveis, a cobertura midiática seguiu presa ao paradigma bancário, tratando saldo em conta como sinônimo exclusivo de riqueza e ignorando justamente a joia da coroa da personagem em questão.
O mais curioso é que, diante de tamanha camaradagem da imprensa e da simpatia espontânea do público, suas marcas acabaram ainda mais valorizadas. O episódio, mesmo envolto em ruído, ampliou tanto o conhecimento geral sobre suas marcas (o chamado brand awareness) quanto a percepção de valor associada a elas (brand equity), dois pilares centrais do branding moderno. Ou seja, quanto mais as pessoas ouviram falar dela, mais desejável e valiosa se tornou sua identidade comercial construída com precisão desde a adolescência e, vale frisar, graças ao desprendimento e à visão patrimonial dos pais. Um ativo que, isoladamente, pode valer centenas de milhões de reais. Em geral, aliás, são os pais ou responsáveis de artistas menores de idade que registram as marcas em nome dos filhos ou em seu próprio nome como medida de proteção, o que torna o caso dela uma exceção.
Se Taylor representa clareza estratégica e governança sobre ativos imateriais, Larissa ilustra os riscos da falta de transparência e da desinformação. E, juntas, as duas expõem o mesmo problema neste boom dos intangíveis, que é a incapacidade da contabilidade tradicional de mensurá-los conforme sua evolução, os tornando assunto de folhetim quando deveriam ser tratados como indicadores de valor econômico real. Esse não é um problema isolado.
Hoje, mais de 90% do valor das maiores empresas globais está concentrado em ativos não materiais, de big data a algoritmos, e nada disso aparece adequadamente nos balanços contábeis. Essa desconexão já produziu efeitos graves. Casos como os da Total e da Holcim, na França, mostram que crises éticas e de reputação e não apenas falhas operacionais podem provocar colapsos de valor em empresas com forte presença intangível. A Total enfrentou pressões globais após escândalos ambientais, enquanto a Holcim (antiga LafargeHolcim) foi acusada de financiar grupos terroristas na Síria para manter operações durante a guerra.
Em ambos os casos, o que ruiu foi o capital de prestígio acumulado por décadas e que, desde então, ainda custa a ser recuperado. Sem mecanismos de governança adequados, ativos como marca e confiança evaporam da noite para o dia. É por isso que entender, proteger e mensurar intangíveis deixou de ser diferencial e se tornou uma questão de sobrevivência.
A crescente valorização dos ativos intangíveis tem transformado a dinâmica econômica global. De acordo com um estudo da McKinsey & Company, nos últimos 25 anos o investimento nesse tipo de ativo aumentou significativamente, representando uma parcela cada vez maior do total investido em economias como os Estados Unidos e dez países europeus. Esse avanço tem andado de mãos dadas com o aumento da produtividade e do valor gerado pelas empresas, indicando que aquelas que apostam em intangíveis tendem a se destacar em desempenho econômico. O movimento tem impulsionado ainda a adoção de financiamentos lastreados em propriedade intelectual, com empresas inovadoras utilizando cada vez mais suas patentes e marcas registradas como garantia para obtenção de capital.
Coreia do Sul e Portugal, por exemplo, já promovem ativamente iniciativas de crédito respaldadas por PI em busca de seu papel estratégico na aceleração da inovação e no estímulo ao crescimento sustentável. Mas, no Brasil, essa virada ainda mal começou. Um estudo publicado na Revista de Economia Contemporânea analisou empresas listadas na B3 e deixou à mostra um cenário revelador. Mesmo em setores altamente dependentes de inovação, branding e presença digital, ativos intangíveis continuam praticamente ausentes dos balanços contábeis daqui. A análise mostra que elementos como marca e reputação, que muitas vezes explicam boa parte da valorização de mercado, simplesmente não encontram espaço formal nos demonstrativos financeiros. Ou seja, o que muitos investidores brasileiros enxergam e valorizam nas empresas não é devidamente capturado pela contabilidade tradicional.
E se no resto do mundo já se negociam ideias como quem negocia terreno, por aqui seguimos presos a uma lógica que só reconhece patrimônio quando ele pode ser guardado na garagem ou estacionado na conta corrente. Essa lacuna, de um jeito ou de outro, começa a ser preenchida fora das planilhas. Celebridades e criadores de conteúdo vêm adotando práticas de registro de nome, imagem e exposição pública como ativos monetizáveis, transformando suas redes sociais em verdadeiros hubs econômicos. Com um portfólio de centenas de marcas, que se expandem para linhas de roupas, perfumes, NFTs, experiências digitais e muito mais, Taylor não é apenas uma artista.
E o mesmo vale para atletas, influenciadores e empreendedores criativos. Os mais astutos registram seus nomes em múltiplas classes da classificação de Nice, antecipando futuras extensões de mercado. Algumas marcas de Larissa, por sinal, já estão habilitadas para usos que vão desde administração patrimonial e emissão de cartões de crédito com marca própria até o desenvolvimento e gerenciamento de empreendimentos imobiliários.
O que sustenta os intangíveis é o lastro econômico. Enquanto ativos físicos se depreciam, os intangíveis escalam com a atenção e se valorizam com a cultura. É por isso que empresas com pouca estrutura física hoje lideram os rankings de valor de mercado. A aceleração vem também do crescimento dos ambientes virtuais, onde ativos sem matéria assumem protagonismo financeiro. Plataformas como Decentraland e Roblox funcionam como laboratórios do imaterial.
Nelas, imóveis digitais, avatares, skins, shows virtuais e até direitos de voz são criados, registrados e vendidos como bens reais. É o valor que nasce da atenção, da identidade e da reputação, os elementos que, mesmo sem presença física, hoje movimentam mercados inteiros. A chamada economia pós-material, na prática, virou prévia de um novo regime de valor.
A fama de uma pessoa (ou a notoriedade de uma empresa) é, em essência, o reconhecimento de uma marca. E, daqui para frente, continuará na dianteira da contabilidade, que terá de se adaptar, goste ou não. Em muitos casos, esses ativos já moldam negócios de grande porte a uma velocidade que planilhas desatentas não conseguem acompanhar.
Mesmo fora dos balanços, essa nova moeda já circula. Invisível aos olhos contábeis, mas indispensável aos mercados que ousam enxergar o óbvio: o que realmente vale, agora, é que o intangível se tornou inevitável.